A convulsão dos dias
Por João Lucas Dusi, escritor e editor
Em sete crônicas pouco convencionais, a experiente poeta e prosadora Silvia Schmidt celebra a linguagem. São relatos pontuais, calcados na singela observação do cotidiano e na constatação de uma situação climática apocalíptica, que seguem um ritmo tão tempestuoso quanto o são os relatos de pequenas ou grandes catástrofes – como se houvesse algo de fúnebre no ar. O caos do discurso, imbuído de uma verve deleuziana, emula o do mundo.
A presença do Relógio do Juízo Final, na crônica de encerramento, não é gratuita: os especialistas calibram esse aparato algo sinistro a partir de desgraças globais. Depois de uma pandemia, dos perigos nucleares e das mudanças climáticas, o trambolho simbólico conta 90 segundos para a meia-noite. “Que Kairós nos dê as respostas antes do fim do mundo”, pede a voz narrativa do último texto.
A iminência da catástrofe derradeira, no entanto, se é que as coisas não vão mesmo é se arrastarem funestas trazendo a reboque toda sorte de evento sinistro para então a humanidade se extinguir de vez ou despertar para novos hábitos em maior harmonia com o todo, não impede que a voz narrativa tenha a sensibilidade de observar o menino autista que mora ao lado e entrar em suas brincadeiras, como ocorre em “O menino azul” e um dos textos da série “Tormenta”, ou que haja espaço para a autora (ou sua imagem ficcional, como queira) dividir o cotidiano com seu gato.
O clima paradoxal do pequeno, mas denso conjunto funciona como uma espécie de espelho para o que parece ser um insondável sentimento coletivo: apesar de toda sorte de loucura rondar o mundo, as pessoas seguem como se nada estivesse acontecendo. Ou assim tentam. E este é, talvez, um dos grandes papéis da trabalhada linguagem ficcional: desvelar o mundo – “sem rotina sem ponto”, no caso de Silvia, muito mais preocupada em se expressar de maneira visceral, como se presa em um monólogo interior, do que em convenções batidas.
A perfumaria da expressão fica justamente por conta da negação da ordem: em nível social, trata-se de uma espécie de saudável revolta (negar as bobagens convencionais que a nada se prestam); já em relação à observação do mundo, essa postura está em conluio com a palavra de ordem do mundo: tormenta. Uma vez mais, a frase que pode funcionar como espécie de mantra: “Que Kairós nos dê as respostas antes do fim do mundo”.
João Lucas Dusi é escritor e editor. Trabalhou por anos nos jornais de literatura “Cândido” e “Rascunho”. Publicou dois livros – “O diabo na rua” (romance) e “O grito da borboleta” (conto) – e está à frente da editora Madame Psicose. Vive em Curitiba (PR).
Sumário
Amenidades
Tormenta I
O menino azul
Tormenta II
Tormenta III
Tribuzana ou alerta vermelho
Kairós
Amenidades
Cronos me avisa neste tempo romano que são três horas e sete minutos no dígito do celular a temperatura é amena de vento leve sob desejo de um alimento quente qualquer lembro que nas madrugadas frias gosto de mingau de aveia e chocolate amêndoas e uvas passas há muito que não o faço a gatinha desperta também mal sabe que em breve receberá outra dose de vacina e será aquele quiproquó enquanto uma agulha fina entrará à força por seu pelo couro corpo comprimido pelo medo como o creme ainda quente queimando-me o estômago o desejo é por doce algo arrefecedor enquanto pela janela semiaberta chegam-me gritos de socorro polícia uma voz rouca de uma senhora forte penso quem será e por que cena tão dissonante nem mesmo Fellini criaria tal cena assim como os miados falas de abre a porta abre a porta sem favor os gatos têm força titã de ditadores assim como escapamentos abertos de motores pedindo para o planeta acordar bem assim às três da manhã.
O creme que me leva à infância em breves segundos tal a Madeleine de Mr. Proust ainda está quente termino-o lambendo os beiços a vida é assim sem enfeites feita de instantes o tempo todo a gata mia novamente eu volto à cama nesta madrugada insone não sem antes ver uma minúscula insecta-coenipeta bibitrix a popular mariposa salvar-se em holos a caminho do esgoto de uma privada aberta batendo suas asas luminosas ao estridente barulho da descarga.
Neste 29 de dezembro de amenidades transbordantes.
Como diria Leminski,
Haja hoje para tanto ontem./ E amanhã para tanto hoje.
Tormenta I
Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha!
Deleuze & Guattari
o que importa se não encontro a folha de papel a caneta para escrever e o café ainda não está pronto eu fora de mim sem vírgula sem ponto na rotina no meu canto se é a tormenta que se impõe tensa anunciada por trombetas densa neblina ventos de 80 a 100 km diria o medidor beaufort afronto à contenção no guaíba o gigante dos pampas já avolumando-se sob ponteiros e ultrapassando seus limites o que importa se escrevo aqui e agora uma carta um conto ou flashes do cotidiano intuídos quando a consciência não relaxa o corpo e a mente sobre o fino travesseiro pois o ritmo e assobio do vento entre halos luminosos são estrondos fortes no centro do oceano tal minha escrita rizomática e cronos ou como o miado do gato exigindo sua ração no prato ele zanzando na sala recém-saído de seus panos no armário penso tivesse eu um caderno escreveria um romance mas encontro sobre a pia louças partilhadas por amigos e mais uma folha de papel em branco perdida na estante de onde a literatura e as cosmogonias nos gritam não teremos tempo de adiar o fim do mundo nas veias abertas sul-americanas assim como em todo o mundo quando a noite desta tormenta é um eufemismo perto de tudo que nos demanda no dia a dia nesta manhã lúgubre parecendo noite escura e eu nem precisarei abrir os aplicativos para ver ouvir o rio a inundar mundos pequenos mundos são chico se tu me quiseres eu sou a gata arisca focinho à janela e olhos mágicos que não gostam de raios invasivos no norte nordeste ou no sul a mão na folha se perde entre rabiscos e sussurros vindos dos vizinhos enquanto se levantam pais e filhos arrumam-se para a escola o menino nauseabundo criança cheia de catarro no peito esvaziado embaixo do chuveiro sob choroso eu não gosto de tomar banho como a gata que pede me limpa a caixa de cocô eu quero eu quero e eu vou até ver os irmãos sumirem na estrada lamacenta de uma servidão carregando às costas nossos sonhos e hecatombes aos que se importam dobram a esquina levantam suas mãos direitas indiciando a deus
O menino azul
Dia 29 após algazarra na principal ou uma farra do boi não me ficou claro o corre corre atrás de uma vaca eu emendei das três horas da madrugada quando me despertaram com buzinas e berros e alardes altos. A farra do boi é tradição açoriana na Ilha mas desde 1997 foi considerada ilegal; direito que penso ser de toda a natureza vegetal mineral e animal lei de proteção contra abusadores de toda ordem.
Após levantar me aproveitei para continuar a faxina meio rotina meio espiritual. Removo os resquícios do que está estagnado e por sua vez empoeirado. Não faltam pelos e cabelos pela casa. Zerei os resíduos removi dejetos da caixa da gata. A cortina do banheiro. Removi móveis e acendi um incenso nos cantos.
Ao abrir a porta deparei-me com um aviso inusitado no apartamento ao lado: “Aqui mora um autista. Respeite”.
É mesmo complicado ouvir seus gritos e repetitivas queixas de “não quero não quero” “não gosto não gosto” para as coisas do cotidiano. E seus pais fazendo tudo para evitar transtornos e mais berros.
Um menino azul de imaginação fértil. Cabelos pretos cortados em cuia. Esguio quase esquelético que ao descer para brincar no pátio repete movimentos de agachamentos simultâneos e segura um cata-vento de uma aba apenas e por horas sonha acordado.
De acordo com o relatório do CDC publicado em março de 2023, 1 em cada 36 crianças de 8 anos é diagnosticada com Transtorno de Espectro Autista – TEA.
Nesta manhã o menino desce alegre sabendo estar de férias tal um saltimbanco. A gata que também repete e o exige miando “eu quero eu quero” o tempo todo adora este movimento ao lado e a cada berro ou choro ou risadas altas suas antenas etéreas circulam rápido. Os olhos se fixam e me pedem para abrir a porta.
Eu me perco entre os miados os espantos enquanto preparo o meu banho de sete ervas.
E as linhas manuscritas desta crônica de fim de um ano marco. 2023 para 2024.
Número de páginas | 72 |
Edición | 1 (2024) |
Idioma | Portugués |
¿Tienes alguna queja sobre ese libro? Envía un correo electrónico a [email protected]
Haz el inicio de sesión deja tu comentario sobre el libro.