As histórias de “Flores para Tieta” são como as narrativas oralizadas por homens e mulheres de tempos e espaços já distantes, sentados em suas cadeiras de balanço. A voz do narrador, que por vezes é a da personagem, é a da tradição: traz consigo a experiência de sua vida, mas também a de seus ancestrais. Com muita frequência saltam do texto ensinamentos, alguns transmitidos por meio de provérbios, que buscam a um só tempo dizer sobre o universo de Tietas, Alines, Isauras, Marcelos, Robertos, Fernandos, como também sobre o universo em que está contido o leitor.
O conto que dá nome ao livro é trançado com fios da vida moderna, mas também com os fios da tradição. E neste tecido está em alto relevo as memórias de July, que, ainda no percurso entre sonho e realidade, revisita o jardim do tempo em que estavam vivos os seus amores. O relato é construído a partir de descrições minuciosas: “July, emocionada, sentou no velho banco de madeira que ainda estava lá, à sombra do pé de jambo. Lembrava-se dos acontecimentos dos últimos anos e se perdia em pensamentos naquele horizonte distante pontilhado de saudades”. As imagens criadas por esse emaranhado de registro visual do presente, em construção, e do passado nos conduz a uma reflexão sobre a resistência à concretude de uma modernidade em vias de dispersão.
Mais adiante, no conto “O baile do aviador”, dona Marieta alerta a sua neta sobre o comportamento invasivo e estratégico da colega de faculdade: “ – Isaura, minha neta, abre teus olhos... Amiga solteira entre casal nunca deu certo... Essa moça é muito bonita... Não coloca a palha perto do fogo!”. Envoltas nessa atmosfera de acontecimentos e ensinamentos, as narrativas vão sendo construídas. No final, como se espera de um conto, o leitor tem acesso a uma história que lhe é transmitida em primeiro plano e a outras que transitam sob o véu das palavras ditas.
Embora os contos sejam embebidos na tradição, eles não trazem moradias erguidas em ruas de barro, as personagens não se locomovem em veículos de tração animal, o meio de comunicação entre pessoas distantes não é a carta. “Flores para Tieta” oferece às suas personagens o asfalto, o aparelho celular, o automóvel. Tratam-se de contos contemporâneos, ancorados em nossa realidade brasileira, em que o velho e o novo, o rústico e o moderno compartilham um mesmo espaço.
Também as personagens são erigidas nesse lugar de alternância entre tradição e modernidade. Homens e mulheres são constituídos de sabedoria e ignorância, malícia e inocência. Neste ponto, faz-se necessário destacar o papel das mulheres na obra. Elas protagonizam praticamente todas as narrativas. São batalhadoras, determinadas, carregam nos ombros o peso da responsabilidade, mas também o da ausência de seus maridos. Os homens, diferentemente, são constituídos de personalidades flácidas e valores diminutos, muito embora se destaquem vozes masculinas sábias.
A personagem Sandra, do conto “Exaustão”, é exemplo das tais qualidades. É dito sobre suas obrigações: “Tinha que pagar aluguel, água, luz, gás, fazer a feira; além de tudo, ainda existiam as contas extras e básicas com vestuários e medicamentos que por acaso precisasse. Tudo na sua vida se resumia ao básico, a sua casa, os móveis, a roupa e até as horas que precisava para dormir eram reduzidas, mas, mesmo assim, estava grata pelo pouco que possuía (...)”.
Pelo dito sobre Sandra, já é possível perceber que as narrativas comunicam as minúcias do dia a dia, mas não se encerram nelas. Em “Flores para Tieta”, conto que abre o livro, o sofrimento está presente, mas são as lembranças vívidas de um exuberante jardim e de um animal de estimação querido, que conduzem a trama.
“Exaustão” vem em seguida, trazendo a dura vida conduzida por uma mãe solteira, com pouco tempo e muitos afazeres. Embora seja introduzido por dados de uma vida factível, o conto surpreende o leitor, que se depara com o elemento fantástico como perturbador da ordem.
Assim como os demais, “O baile do aviador” deixa o leitor curioso sobre o destino da personagem principal. Isaura é uma mulher inexperiente, que, ao ignorar a voz da tradição – a que emana de sua mãe e avó –, cai numa armadilha preparada por quem menos esperava.
“Tarde de outono”, o quarto conto do livro, traz como protagonista Marcelo: um rapaz que busca desfazer-se do passado, mas tem seu objetivo frustrado como que por peraltice do destino.
“Fogaréu” é a narrativa subsequente, que aquece o livro de contos. Com pitadas de erotismo, vai sendo traçado o destino de um homem e uma adolescente, que se lançam numa relação insana.
Em seguida vem “Depois da chuva, vagalumes e estrelas”, história narrada em primeira pessoa. A voz da narradora e personagem, Anita, detalha como se tornou onisciente e onipresente. O caminho, percorrido até o dia em que se tornou vítima de um crime, tem nas margens histórias de vidas exemplares, como a de seu pai, Fernando.
“Menina sapeca” encerra o livro de contos, trazendo a história de uma criança, Alice. Sua vida também é marcada por perdas: seus pais morrem num acidente de carro. A narrativa é leve e o clímax não é constituído por uma tragédia, embora imprima uma reviravolta significativa. Mais que os outros, “Menina sapeca” se deixa levar pela tradição, e as histórias passadas adiante, em tardes e calçadas, não só encerram o conto, mas permitem que o livro e o conto sejam espelhos para uma tradição que se projeta no infinito.
Maria Betânia Monteiro
ISBN | 978-85-922550-0-8 |
Número de páginas | 79 |
Edición | 1 (2017) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabado | Tapa blanda (con solapas) |
Coloración | Blanco y negro |
Tipo de papel | Offset 80g |
Idioma | Portugués |
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